sábado, 19 de setembro de 2009
A galinha da Clarice
A galinha da Clarice é burra, é quase que nem um espaço vazio, é uma simples máquina biológica com alguns reflexos vagamente humanizáveis. Foi demorada a escolha da galinha. Foi um impulso de virtuosismo. A Clarice havia sentado querendo transmitir a violência selvagem da vida misturada à arbitrariedade da ternura, e estava muito sensível ao surrealismo do cotidiano. Podia ter pegado uma ama de casa. Podia ter pegado uma mulher, uma mulher simplória, subjugada pela sociedade patriarcal, violentada, submissa (fim da violência externa), conformada, esperançada, embotada, grávida (fim da violência interna), puérpera, de olhos brilhantes e a contra luz (ternura arbitrária). Era uma escolha óbvia, era uma escolha sem poesia, carregada de mensagens feminissérrimos. E a política, como sabemos, não é que seja má, é que não é poética. A violência, a ternura, o surrealismo, mereciam um emissário melhor, um emissário verdadeiramente vazio, para que assim a imagem central não ficasse misturada com a do emissário. Sorriu. Tem bicho mais burro, mais mineral, que uma galinha? Pensou se seria um exagero. Era possível botar violência, ternura, e até surrealismo em algo tão oco quanto uma galinha? Sopesou a idéia como ridícula, procurou outro emissário. Uma mulher arborícola no Congo central também seria um exercício interessante. Mas aquele dia se sentia ousada, sentia o domínio da prosa ruborizando-a por dentro. Se sentia imortal. Então pensou na galinha. Para ser organizada, começou pela violência. A violência foi fácil. A galinha ia ser morta e comida. A galinha nunca fugiu. Foi a casualidade que a depositou no telhado. Ela não saberia fugir, nem decidir fugir de quê, nem se reconhecer fugida uma vez fugida. Foi humanizá-la que a tornou fugitiva, foi o olhar do humano, dando imaginários sentimentos a seu vazio mineral, que a culpou. E lá veio a violência desnecessária, pega da assa, jogada no chão. Quando seu corpo bateu no chão, era o sofrimento que começava, e que não acabaria até que a máquina biológica voltasse a ser mineral, sem terminações nervosas. Naquele momento de derrota, de ossos quebrados, a galinha lembra que está viva a sua maneira quase celular. Naquele momento seu esfíncter despejou um ovo. Talvez um reflexo a fez gritar có-có-có-có. E até erguer a cabeça de maneira que um humano sentimental a achasse inchada de orgulho. O ovo que sai rolando, a galinha com sua asa quebrada, completamente desorientada, indo atrás de seu ovo sem compreender o que era aquele vulto branco. E aquele momento surrealista, o segundo do conto na verdade, serve de nexo para a ternura arbitrária que ainda estava faltando. A família vê o que não existe, vê amor onde só tem burrice, vê coragem onde só houve confusão. E ama aquela galinha. Se apropria dela, faz dela um bichinho de estimação mais morto que os de pelúcia. O menino da casa bem queria o amor que o pai está dando à galinha, porém o menino acha justo. E a galinha nem aproveita aquela ternura injusta, não tem como aproveitar. Não existe amor mineral. A história da galinha lhe pareceu boa, defendível, tampouco inspirada, apenas um trance de virtuosismo. Era bom saber que a prosa fluía na sua cabeça, como sempre. Mas também não era uma estrela, uma explosão, uma chama. Voltou ao papel porque agora que o êxtase havia cessado, queria deixar aquela desilusão inventariada no conto. E foi assim como a galinha não teve funeral.
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